Não se constroem estátuas de críticos
Debater sobre música pop na internet é como tentar arar o oceano: se colhe nada
Em março de 2022, Charli XCX foi fotografada pelas ruas de Londres vestindo um top com a frase “They don’t build statues of critics” estampada na frente. Seu quinto álbum de estúdio, Crash, sairia no dia seguinte. Foi um sucesso de vendas e crítica, porém essa ação da véspera acabou reverberando mais, pois deu um slogan à guerra de artistas e seus fãs contra a suposta elite intelectual anti-música pop. Só que a cantora inglesa não era a melhor pessoa para se dizer injustiçada pela crítica.
Desde o momento no qual despontou no cenário pop britânico, Charli recebeu muita atenção positiva da imprensa, especialmente de publicações conhecidas por apelarem a uma audiência mais indie. Ela sempre teve uma cobertura favorável de seus trabalhos dentre a crítica especializada e era vista como o futuro da música pop.
Tanto que seu êxito mundial com Brat foi recebido por público e crítica com um senso de comemoração. Finalmente ela tinha seu lugar no panteão de principais estrelas do planeta assegurado. E mesmo assim a mensagem do top perdurou, o sucesso dela sendo uma vitória contra os antis da imprensa, mesmo essa em maior parte sempre estando ao seu favor.
O problema não é com Charli em particular. Ela sofreu muitas críticas por parte do seu próprio público, seja por abandonar a sua sonoridade inicial ao se aliar com o produtor A.G. Cook, ou por adotar estéticas duvidosas em videoclipes. Muitas dessas críticas são injustas e dizem mais sobre quem as faz do que para quem são direcionadas. Porém, foram em sua esmagadora maioria feitas pelos fãs dela ou os exércitos onlines de outras popstars.
A cultura de fandom online é particularmente insalubre. Exércitos de pessoas sem inteligência emocional alguma cometendo assédio, abuso emocional e fazendo ameaças de morte em nome de pessoas que nunca conheceram. Alguns popstars já se mostraram contra esse tipo de comportamento, enquanto outros usam de suas plataformas para coordenar campanhas direcionadas a jornalistas cujas resenhas não foram positivas o suficiente.
E o público vai junto, pois é tudo para manter sua estrela preferida feliz. É muito fácil atrelar sua saúde mental ao sucesso de popstars, pois tira a agência de sua vida, porém chega um ponto no qual alguém precisa se perguntar: porque preciso fazer outra pessoa se sentir como eu não quero me sentir para agradar os caprichos com quem tenho uma relação estritamente parassocial?
Pior, algumas dessas popstars ativamente desprezam seu público, como Doja Cat – também fotografada com o top. Katy Perry, a mais recente a vestir a blusa nas redes sociais, vem enfrentando uma torrente de críticas que vão muito além de “papo de anti”, então seu uso é particularmente desonesto.
Os dois singles de seu novo álbum, 143, foram mal recebidos por público e imprensa, porém a cantora já foi sujeita a críticas devido a uma decisão criativa muito polêmica. Após mais de uma década, ela voltou a trabalhar com Dr. Luke.
Para quem não sabe, Dr. Luke é um guitarrista e produtor que, após um período na banda do Saturday Night Live, se tornou um dos principais nomes da música do século XXI. Pink, Avril Lavigne, Katy Perry, Kesha, ele foi o maior responsável pela estética pop do final dos anos 2000 e início da década de 10.
E aí Kesha revelou como ele abusava ela. Fisica, emocional, e sexualmente. A indústria inicialmente fingiu que não estava ouvindo, tratando a cantora como sua imagem pública – uma garota festeira e beberrona. Luke a tinha sob contrato e praticamente arruinou sua carreira. Demorou alguns anos para a narrativa em torno do caso mudar e o produtor ser sujeito a um exame profundo de suas ações.
Luke a partir de 2017 começou a sentir consequências de suas ações. A Sony cortou laços, assim como o selo Kemosabe Records, que ele havia co-fundado. O produtor encontrava trabalho esporádico, e toda pessoa com a qual se envolvia era sujeita a críticas de público e imprensa. Afinal, o cara nunca admitiu suas ações.
Ele começou a voltar aos poucos através de trabalhos com cantoras que nem Kim Petras e – olha só quem voltou à história! – Doja Cat. E agora Katy Perry, sua principal colaboradora e a responsável por lhe alavancar ao cume do pop, reatou laços para um álbum triunfal de retorno.
O debate não é sobre o top ou sobre o papel de críticos na indústria musical. Ou até sobre fandoms online.
Popstars são pessoas que se encontram constantemente vulneráveis. Seja à opinião da gravadora, de produtores, compositores, seus colegas de indústria, imprensa e público. Não importa o grau da crítica, o volume total delas nesse ambiente atual de redes sociais é avassalador. É complicado exigir perspectiva de alguém sujeito a esse tipo de escrutínio constante.
Porém, quando a resposta a esse escrutínio é direcionar abuso a pessoas sem a capacidade de se defenderem ou tentar reposicionar o debate como sendo relacionado à imprensa ser anti, exigir perspectiva dessas pessoas se torna necessário. Alguns popstars precisam desesperadamente tomar um simancol, ou um pescotapa.
O que estou assistindo
Jon Bois é um dos melhores documentaristas em atividade. Certamente o melhor produtor de video essays na internet. Ao longo de mais uma década no site SB Nation, ele lançou obras explorando bizarrices, como quebrar jogos de esporte e outras curiosidades.
Entretanto, o mais apropriado para o momento talvez seja esse de oito anos atrás. As Olimpíadas podem ser vistas como o ápice do ser humano hoje em dia, mas o evento ainda carrega consigo traços da estupidez dessa maratona em particular. Um festival de absurdos.
O que estou ouvindo
Em 2017, Yannis Philippakis e Tony Allen juntaram forças para algumas sessões no estúdio. O primeiro é o líder do Foals, uma das maiores bandas de indie britânico do século XXI, responsável por introduzir elementos de math rock ao grande público do país. O segundo era simplesmente o baterista e diretor musical de um dos maiores conjuntos a pisar nesse planeta, Africa ‘70, responsável por acompanhar o pioneiro do afrobeat Fela Kuti.
No papel essa parceria faz sentido total. A música do Foals sempre teve uma influência fortíssima de polirritmos africanos, e Allen ao longo de sua carreira lendária trabalhou com músicos rock antes – Ginger Baker foi um amigo por décadas e Damon Albarn um colaborador frequente nos anos 2000, seja no Gorillaz, The Good, The Bad & The Queen ou Rocket Juice & the Moon.
Entretanto, Allen morreu em 2020, aos 79 anos. A impressão era que o resultado das sessões entre ele e Yannis Philippakis ficaria numa gaveta para sempre. Até abril desse ano, quando o músico inglês anunciou o EP Lagos Paris London, contendo canções gravadas pelos dois.
O disco sai dia 30, mas três canções já estão disponíveis em streaming. É fenomenal.