Qual o valor do virtuosismo musical?
Num mundo no qual todo mundo toca igual, soar completamente diferente vira a melhor de todas as estratégias possíveis para um artista
Um dos meus guitarristas preferidos dos últimos 15 anos se chama Blake Mills. O cara hoje em dia se estabeleceu entre os principais produtores musicais dos Estados Unidos, porém ele começou como a grande promessa do instrumento no país. Entretanto, a maneira pela qual o cara ficou conhecido não se adequa aos padrões normais.
Mills construiu para si uma sonoridade complexa a partir de instrumentos, afinações, técnicas e equipamentos incomuns. Ele basicamente pegou todas as noções tradicionais de guitarra e as virou do avesso. O efeito disso foi sísmico, com a influência de seu álbum Heigh Ho (2014) reverberando pela música independente e mainstream até hoje, seja na música de Phoebe Bridgers, Marcus Mumford, Brittany Howard ou até mesmo Taylor Swift.
Várias figuras na história da música popular ao encontrar um som tão forte se acomodaram e deixaram de descobrir algo novo. Mills não. Enquanto todo mundo passou os últimos dez anos tentando recriar a sonoridade daquele álbum, o guitarrista começou a produzir e quase abrir mão do instrumento.
Seus trabalhos subsequentes – Look (2018) e Mutable Set (2020) – foram experimentos cada vez mais audaciosos em minimalismo. Meu disco preferido dele, Notes With Attachments, uma colaboração com o baixista Pino Palladino, trata-se de uma mistura fascinante de jazz com música africana.
Em 2023, ele lançou Jelly Road, seu álbum mais “convencional” em uma década. Trata-se do fruto de uma parceria com o músico Chris Weisman, que apesar de pouco conhecido pelo grande público, criou para si uma carreira de respeito em círculos mais experimentais. O trabalho é notável pelo uso de guitarra sintetizada, algo normalmente relegado ao rock progressivo ou caras como Pat Metheny, mas Mills usa o instrumento no contexto de folk.
O resultado é lindo, e o caminho percorrido pelo músico até chegar nesse álbum me faz pensar em como caracterizamos talento. Blake era um excelente guitarrista em termos de técnica desde adolescente, capaz de tocar qualquer coisa. Mas isso lhe entediava. Logo, escolheu procurar novas maneiras de explorar sons. Isso o levou a Heigh Ho. Ele ficou entediado com isso também depois de um tempo, e por aí foi.
A indústria exige de instrumentistas uma versatilidade gigantesca para atender qualquer demanda estilística, então a habilidade de se mover pela escala com facilidade acaba sendo a moeda do reino. Isso por um lado funciona porque cria um ambiente no qual mão de obra especializada é abundante, mas também a custo de criatividade de heterogeneidade sonora.
E então existem músicos como Mills, que desenvolvem um som próprio tão marcante a ponto de se tornar a nova coisa a se copiar da indústria. O guitarrista americano Mk.gee lançou um dos álbuns mais falados do ano, Two Star & the Dream Police, e o timbre de seu instrumento virou obsessão online.
Logo, vários discos mainstream terão algum resquício dessa sonoridade, e fica-se a ver se o músico continuará igual ou tentará se manter à frente do resto. Levando em conta a criatividade no desenvolvimento de seu estilo, a esperança é que veremos algo diferente no futuro.
O que estou assistindo
Slow Horses retornou justamente quando fiquei sem tempo de escrever a newsletter, então felizmente tenho três episódios na conta agora para dar minha opinião. É uma das minhas séries preferidas desde a estreia, e essa quarta temporada começou muito bem.
Trata-se de uma farsa de espionagem, estrelada por agentes de inteligência relegados à geladeira do MI5. Se você gosta de intriga, humor e Gary Oldman interpretando o maior porco da Inglaterra, prato cheio.
O que estou ouvindo
A terceira mixtape de Doechii, Alligator Bites Never Heal, é um dos melhores lançamentos de hip-hop do ano. O lirismo da rapper da Flórida, além de seu flow cirúrgico, já havia chamado minha atenção no início de 2024 com as chamadas Swamp Sessions, que culminaram neste lançamento.
Numa era pós-treta Kendrick-Drake, na qual artistas com algo a mais a dizer parecem ter o ouvido do público mais do que nunca, Doechii está na posição de criar algo especial para si.
Tirando a colaboração com a Katy Perry. Aquilo foi triste.